sábado, 29 de setembro de 2007

Escutatória

Rubem Alves



Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar.

Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil. Diz Alberto Caeiro que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma". Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia.

Parafraseio o Alberto Caeiro: "Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma". Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer.

Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor.

Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua experiência com os índios. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, [...]. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas.). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem.

Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que ele julgava essenciais. São-me estranhos. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades. Primeira: "Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado". Segunda: "Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou". Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada.

O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou". E assim vai a reunião. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia.

Eu comecei a ouvir.

Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras.

A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia e que de tão linda nos faz chorar.

Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também.

Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto.
Eu seria a primeira aluna desse curso... eu já ando cada dia mais silenciosinha mesmo.
Acho muito bom.
Não sei se é porque o meu avesso, o meu contrário...bocuda e tagarela que eu sempre fui, né?
Mas tenho achado bom esse movimento que me apareceu, do nada, de prestar mais atenção, perceber mais o outro.
E vc, escuta bem?

6 comentários:

Comentários sobre arquitetura disse...

Putamerda, que post mais perfeito! Copiei e guardei no coracao!

Anônimo disse...

Adoro esse texto do Rubem Alves, alias, já cultivei uma paixão nada secreta por ele...beijos.

Luiz Henrique Vieira disse...

Sim, creio que posso dizer que, na maioria das vezes, sou um ouvinte atento, interessado e paciente. No entanto, de muito poucos anos pra cá, venho, gradativamente, perdendo o respeito por aquele tipo egocêntrico que pensa que os demais são obrigados a escutar seus infindáveis monólogos acerca de si mesmos. Uma ou duas vezes, cheguei a desligar o telefone na cara de algum ‘amigo’ dessa classe. É uma experiência restauradora e recomendo a todos.

Anônimo disse...

Ola, bocoiola! a casa nova é arejada e limpa, gostei!
Bom saber desse seu movimento para dentro, estou nele ha muito tempo... aliás, acho que quase sempre fui mais "escutatória", low profile mesmo.
Beijo bem grande, te amo.
PS - sim, meu telefone continua o mesmo...

Unknown disse...

Eu sou bocuda também, Bela, falo pelos cotovelos. Mas também estou nesse movimento de escutar mais. Principalmente depois que li este texto há algumas semanas, e fiquei muito impressionada. Olhar e ver o outro, escutar e ouvir o que ele está dizendo é muito bom, faz um bem imenso pras relações.
Nem acredito que vou te ver semana que vem, ô coisa boa!
bjks

Mi disse...

SOH VC!!!!
Ameiiiii o post!!
Perfeito!